Publicado a 16/10/2023
O que passa pela cabeça de um doente bipolar?
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Delfim Oliveira foi um dos fundadores da Associação de Apoio aos Doentes Depressivos e Bipolares, depois de 1989 ter sido diagnosticado. Dora Paulo sabe há dez anos que é doente bipolar. As histórias de quem vive com uma doença psiquiátrica. Os caminhos de Dora e Delfim cruzam-se num diagnóstico, ainda que a ele tenham chegado com mais de duas décadas de diferença. A doença bipolar é parte das suas vidas que, em grande parte, dedicam a ajudar outros a trilhar o mesmo caminho, nunca igual, muitas vezes difícil, que melhor se faz acompanhado. Dora Paulo, de 48 anos, foi diagnosticada com doença bipolar “há exatamente dez anos”, marcados por “vários internamentos e alguns surtos psicóticos”. “Comecei a não dormir, a gastar muito dinheiro, a ficar extremamente irritada, quando na verdade sempre fui uma pessoa muito calma e afável. A minha família notou que eu não estava bem e levou-me ao hospital, onde fiquei internada e tive o meu diagnóstico”, partilha a jurista na Agência Portuguesa do Ambiente. A bipolaridade traz a Dora um turbilhão de ideias ligadas ao voluntariado e à solidariedade, que pratica apoiando crianças no Uganda. “Quando tenho crises, surgem pensamentos de que tenho superpoderes, pensamentos de que vou salvar o mundo”, descreve. Já Delfim Oliveira, de 75 anos, era tomado “por ideias inovadoras, megalómanas, que depois acabava por não ter capacidades para desenvolver”. O diagnóstico do antigo chefe administrativo da Marina mercante foi feito em 1989 e, tal como o de Dora, surgiu na sequência de um internamento. As suas histórias cruzam-se na Associação de Apoio aos Doentes Depressivos e Bipolares (ADEB). Delfim foi um dos seus fundadores, publicitando publicamente projeto quando outros “tinham receio de ser despedidos” se o fizessem, e agora é seu presidente. Dora associou-se à ADEB, que procura dar voz aos doentes bipolares, participando nas suas muitas atividades e grupos de apoio. “Estava um caos” Foi no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, que Delfim Oliveira encontrou resposta para algo que o impedia “de ter um raciocínio lógico”: tinha doença bipolar. “Estava numa fase em que já não conseguia cuidar de mim. No fundo, estava um caos”, partilha o presidente da ADEB. Delfim Oliveira passava por estados de euforia, em que se sente “uma alegria expansiva fora do comum”, com a “inteligência a funcionar a mil à hora”. “Fiz coisas em seis meses que, se calhar, não fazia em seis anos. Mas há um desgaste físico e mental muito grande e a energia foi-se esgotando porque não dormia”, descreve. Ao fim de um ano, teve “uma recaída” e voltou a ser internado. Olhou então para quem nunca deixou o seu lado e reconheceu “que não podia continuar assim”. “Além de estar a sofrer, percebi que estava a fazer sofrer a minha família, os meus dois filhos, que era menores na altura. Comecei a tomar a medicação, que ajudou-me a estabilizar, assim como a psicoterapia”, recorda. Acabou também ali por encontrar um caminho de estabilidade, permitindo-lhe estar ao lado de muitos outros doentes bipolares. Foi um dos fundadores da ADEB, pela qual deu “a cara desde o primeiro dia”, e que junta agora cerca de cinco mil associados, entre os quais se encontram também familiares de doentes. “Adoece a família toda” Luís Oliveira, neuropsicólogo e vice-presidente da ADEB, é também um testemunho da importância da família no apoio ao doente bipolar. Filho de Delfim Oliveira, sempre teve “interesse em conhecer a mente humana e ajudar pessoas”. “O diagnóstico do meu pai e o facto de ele ter sido um dos fundadores da ADEB contribuíram para que me juntasse à associação, onde cerca de 15% dos nossos associados são familiares de doentes bipolares”, conta à SIC Notícias. Na associação, há grupos de apoio onde os familiares “podem partilhar as suas experiências e angústias”, porque “o doente sofre, mas a família, que é a grande base ou pelo menos deveria ser, também sofre com ele”. “Quando o doente é diagnosticado, adoece a família toda”, sublinha o neuropsicólogo, lamentando a a falta de investimento “em organizações sociais que têm doentes e familiares nos seus órgãos sociais, porque são uma forma de dar realmente voz a essas pessoas e não há ninguém que saiba melhor o que é viver com uma doença do que o próprio doente”. Estes “portos de abrigo” são, por isso, cada vez mais importantes numa sociedade que se debate “com o estigma associado às doenças mentais e um sistema lento, que leva a meses de espera por consultas”. “Com o diagnóstico de doença bipolar surgem, muitas vezes, outros problemas como a obesidade. Há medicação usada nestes casos, por exemplo, que dá muito apetite”, alerta o vice-presidente da ADEB, que já ouviu as promessas do ministro da Saúde, Manuel Pizarro, para esta área, mas “ainda não se viu nada”. Ainda assim, a ADEB promete continuar o trabalho que desenvolve há mais de 30 anos, disponibilizando informação e apoio sobre a doença bipolar e outros problemas que lhe estão associados. Pode saber mais sobre a doença e os seus sintomas aqui. “Falo abertamente da minha doença” "Comecei a não dormir, a ficar irritada e a gastar muito dinheiro", Dora Paulo é doente bipolar Dora chegou ao diagnóstico graças ao apoio da família, cuja “calma e serenidade” têm sido essenciais para que, depois de uma crise, volte a encontrar o caminho para a estabilidade. “A minha mãe é uma santa. Normalmente, durante as minhas crises, virava-me muito contra ela e acabava por me ajudar bastante. A minha estrutura familiar é essencial porque sempre que saio de uma crise, entro em depressão e sem a minha mãe não conseguiria sair desse estado”, desabafa a jurista, que também alimenta a paixão pela poesia, o que a levou até a publicar um livro. Nunca sentiu preconceito por falar “abertamente” sobre a doença bipolar, nem mesmo no local de trabalho, onde acredita “que as pessoas entendem” os desafios que este diagnóstico acarreta. Hoje, se pudesse fazer-se ouvir por todos aqueles que recebem agora o diagnóstico de bipolaridade, deixaria apenas um conselho: “Nunca deixem de tomar a medicação porque sem ela não conseguimos ficar bem, é muito importante”. Por Cláudia Machado a 10 out. 2023 + VER REPORTAGEM |